quinta-feira, 16 de dezembro de 2010



Nüwa e Fuxi: os irmãos que engendraram a humanidade

           
          Antigamente, quando estava se abrindo o universo e céu e terra ainda estavam separados, viviam no monte Kunlun duas criaturas com rosto humano e um corpo de serpente: Nüwa e seu irmão Fuxi. Se bem que, nas últimas semanas do inverno, Nüwa passava seus dias sozinha. Já era possível antever os primeiros fios d’água escorrendo entre as rochas congeladas quando Fuxi resolvera peregrinar em busca da Árvore Primeva. Na ocasião ela o questionara:
          - E onde fica tal árvore?
          - Fica em uma planície rica onde a harmonia reina entre os vários animais que ali vivem – respondeu Fuxi. De altura, a Árvore alcança milhares de varas e sob sua copa não há qualquer sombra em plena luz do dia. Seus frutos suculentos têm sabor incomparável e suas folhas são semelhantes às do cânhamo.
          - E quando foi que esteve lá? - indagou Nüwa.
          - Nunca estive – afirmou Fuxi.
          Ela franziu a testa, - Se nunca esteve lá como pode saber tantos detalhes?
          - Eu a vi enquanto meditava – confessou Fuxi -, um sopro oculto me mostrou que ela se encontra no centro mesmo do céu e da terra.
As palavras de Fuxi ecoavam em sua memória, agora que a primavera renascia e o sol já marcava outras sombras.

           Ofuscada pelos matizes da nova estação, Nüwa sentava às margens do Rio Amarelo. Admirando a beleza da região, contemplou o grande vazio. Olhou para a vastidão deserta e uma brancura invadiu seu espírito. Sentiu tristeza diante da solidão e do silêncio que ali reinava. E, então, olhou seu reflexo na água do rio e teve uma idéia. Reparou na argila amarela que, soprada das estepes áridas a noroeste, se deposita na ribanceira e confere ao rio sua cor amarelada e seu nome. Pegou um pouco da argila e começou a moldar uma cópia menor de si mesma. Moldou pernas para que a figura ficasse em pé e depositou a figura no chão. Ao ser iluminada pelo sol, esta se espreguiçou e em instantes já cantava e dançava de alegria.
           Satisfeita, Nüwa tomou mais barro e moldou uma e outra. Com uma diligência e uma entrega que não conheciam o descanso, trabalhou a terra durante meses. Dizem mesmo que ela dava à luz setenta vezes ao dia. E dessa maneira, foram criadas as primeiras pessoas da terra amarela.

          Durante todo esse tempo, Fuxi percorreu as zonas interiores, entre os rios Negro e Verde, e avistou as nove colinas cercadas por um leito d’água. E pôde conhecer as mais diversas criaturas, para, finalmente, em Duguang, encontrar a Árvore Primeva.
          Diante daquela Árvore, por alguns instantes, permaneceu paralisado. Um arrepio lhe percorreu a espinha, e, como um raio, subiu seu tronco. E com seu corpo de serpente alcançou os galhos mais altos, tomou seu fruto e bebeu o suco. Mastigou suas folhas. E do alto contemplou o Céu. Por dias, Fuxi viveu entre seus galhos. Um tempo indeterminado se passou até que ele retornasse à terra.
          Logo, sentiu o cheiro da terra e a agarrou em suas mãos. Olhou o campo. Todas as criaturas que circulam pelo ar e pelo chão. Vozes novas de passarinhos ensaiavam o inaudito. Seus sentidos estavam aguçados. Pequenos choques percorriam seu corpo. Que segredo guardaria esse mundo confidencial das raízes?
          E da terra, pôde contemplar o céu. Em seus sinais seguia buscando algum padrão. Observou com veneração a terra para extrair as leis, e fixava sua atenção nos desenhos e nas formas que se podem ver na pelagem dos animais. Examinou as penas das aves. Leu os cascos das tartarugas. E assim compreendeu. Pôde extrair os padrões menores do que havia em seu ambiente próximo, e, baseando-se neles, inventou os oito trigamas, por meio dos quais foi possível compreender o poder das deidades conhecidas e deduzir por analogia a realidade da cada coisa do universo. Foi quando uma suave brisa lhe soprou o ouvido. “Enfim o encontrei“, disse Nüwa, com o sorriso coroado de flores.

          E então, deitados sob a copa da Árvore, contaram tudo o que lhes havia ocorrido naqueles meses. Nüwa falou sobre seus feitos e como eram divertidas as pessoas da terra amarela. Fuxi lhe mostrou as sutilezas sob as formas das folhas da Árvore. Um tempo indeterminado se passou enquanto conversavam, até que um saboroso silêncio reinou sob a copa. De repente – tunc! - um fruto, descuidadamente, caiu entre os dois. E então, beberam seu suco. E suas caudas se entrelaçaram. E os irmãos se uniram, ali, no centro mesmo do céu e da terra.
          Em algumas semanas, já estavam às margens do Rio Amarelo. Passaram-se alguns meses desde que Nüwa saiu em busca de Fuxi. Ao voltar, percebeu que o povo da terra amarela vivia na penúria e sem qualquer organização. Sem extrair da terra o necessário para a sobrevivência. Então, ela ensinou aos seres humanos como se reproduzir e estabelecer famílias. Fuxi lhes ensinou como tecer redes tal como as aranhas fazem. Ensinou-os a pescar e a caçar. Fabricou instrumentos musicais e ensinou o povo a compor canções.
          E por fim, Nüwa deitou-se na terra e se transformou em uma imensa cadeia de montanhas. E de suas encostas, jorrava a fonte das águas que alimentavam a vida. Fuxi se tornou o primeiro dos Três soberanos, ficando conhecido como o Imperador que governava a primavera e seguia as virtudes do elemento Madeira. E todos os anos, quando o Trovão, abrindo e sacudindo o solo, escapa do refúgio subterrâneo onde o inverno o confinara, o povo da terra amarela celebra a primavera e faz oferendas no templo da Montanha-Mãe.
                                                 
(Adaptação livre de fragmentos a respeito de Nüwa e Fuxi. Os fragmentos são encontrados em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de Barcelona, 2004. Edição e tradução de Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal. Outras fontes: Von Koss, Monika. Tecendo o fio de seda: a figura materna na cultura chinesa. São Paulo: Andreoli, 2010. Maspero, Henri. El taoísmo y las religiones chinas. Trotta: 2000.)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010


Pan Gu e o nascimento do mundo

          No início dos tempos, céu e terra estavam unidos e mesclados em um ovo. E dentro dele nasceu Pan Gu. Durante muito tempo o menino Pan Gu cresceu no ovo. Aos poucos, despertou. E se apertou. Logo já não cabia dentro de si. Mal podia se espreguiçar. Com toda a força apoiou os pés, ajeitou os ombros e empurrou para cima.  Aos poucos o que era claro foi se fazendo céu e o que era turvo foi se fazendo terra. E o céu subia uma vara ao dia, e a terra baixava outra vara e Pan Gu crescia outro tanto. Passaram dezoito mil anos e o menino virou homem. O céu chegou ao máximo pelo alto, a terra ao máximo por baixo e Pan Gu ao máximo de seu tamanho.  O homem madurou. Compreendeu a sabedoria do céu e a potência da terra.
Cansado, Pan Gu se deitou. Fitou o céu, e soube que estava morrendo. E, assim, seu corpo foi perdendo a forma. Respirou profundamente e seu hálito ventou nuvem. Uma tosse fraca e sua voz arranhou trovões. Logo o olho esquerdo brilhou sol. E o direito piscou lua. No cabelo, o negro céu caiu caspas de estrelas.
Ofegante, choveu até transpirar. Suou pântanos. Suas montanhas retesaram músculos. Logo, tendões alongaram estradas de terra, saltaram veias na grama. A pele dos campos se fez bosque. E o sangue jorrou rios que correm pela terra. E enfim, seus ossos descansaram pedras entre dentes minerais. Da medula verde jade. Do esperma a pérola.
E seus ácaros? Soprados pelo vento, caem homens. Estes se juntam em povos. E se coçam pelo mundo. Dentre eles, alguns ainda se lembram de Pan Gu. Ensinam a escuta do corpo. Observam as estações. São atentos aos humores das coisas miúdas. E ao silêncio das mutações.

(Adaptação livre de fragmentos a repeito do mito de Pan Gu. Os fragmentos são encontrados em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de Barcelona, 2004. Edição e tradução de Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal. Outras fontes: São Paulo: Andreoli, 2010. Maspero, Henri. El taoísmo y las religiones chinas. Trotta: 2000.)