terça-feira, 17 de julho de 2012


quem sabe acordar um dia e,
sem nenhuma razão em particular,
percorrer o caminho.

e então, caminhar até o fim da estrada.
sem nenhuma razão em particular.
somente caminhar.

quando o cansaço vir, descanse.
quando sentir fome, coma.

quando for preciso ir...
simplesmente vá

é capaz de acreditar que as coisas podem ser feitas
sem que haja razão
para tal?

estou muito cansado
acho que vou retornar
ou o tao.

eu não sei se
nós temos um destino
ou se apenas somos
soprados
por aí
ao sabor do vento

e por que escolher entre
o isso e o aquilo?

Fico com os dois caminhos
Ambos são verdade
Ambos são mentira
Ao mesmo tempo

Andar por dois caminhos






terça-feira, 29 de maio de 2012






Tô bem de baixo prá poder subir
Tô bem de cima prá poder cair
Tô dividindo prá poder sobrar
Desperdiçando prá poder faltar
Devagarinho prá poder caber
Bem de leve prá não perdoar
Tô estudando prá saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar

Eu tô te explicando
Prá te confundir
Eu tô te confundindo
Prá te esclarecer
Tô iluminado
Prá poder cegar
Tô ficando cego
Prá poder guiar

Suavemente prá poder rasgar
Olho fechado prá te ver melhor
Com alegria prá poder chorar
Desesperado prá ter paciência
Carinhoso prá poder ferir
Lentamente prá não atrasar
Atrás da vida prá poder morrer
Eu tô me despedindo prá poder volta


(Tom Zé)








Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
Imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.


(Manoel de Barros)

sábado, 26 de maio de 2012








Os antigos Mestres de fato viam intimamente. Perceberam que como nada durava mais do que o instante fugidio, em última instância nada existia. Perceberam também que “nada” é alguma coisa e que o oposto de uma verdade profunda é outra verdade profunda. Nada existe. Algo existe. “Todos os cretentes são mentirosos, disse o cretense”. É melhor ficar de boca calada.

Contudo, esses velhos camaradas descobriram algo importante. Se nada existe como o conhecemos, se tempo e espaço são categorias intelectuais, não há nada que possamos captar de verdade, ordenar ou desordenar. Isso nos deixa livres.

Deixa-nos atuar no teatro cósmico da mente. O mundo todo é um palco e nós somos os não atores. Será que a vida pode ser tão simples quanto isso?

Dali em diante desceu-se ladeira abaixo para o próximo estágio, então o seguinte. Limites! Preferências !! Apegos !!! E, antes que nos déssemos conta, nossos dias se encheram  de bebês chorando, pagamento de hipoteca, mensagens nojentas na caixa de correio.

Prejuízo e totalidade estão nos olhos de quem vê, é claro. Se você é uma criança, não há nada mais divertido que descer ladeira abaixo. Uma tragédia é uma comédia mal compreendida. Uma vez entendendo o que você é nada resta além de gratidão e riso. 


(Stephen Mitchell, O Segundo livro do Tao)

sexta-feira, 13 de abril de 2012




Mas afinal o que é o Yin?
Mas afinal o que é o Yang?

E o que é o eu?
E o que é o outro?

Nós
Somos eu
Eu somos
Nós

Algumas vezes somos
apenas uma estrela solitária

Outras vezes somos
Um

Ora
um
Ora
outro


segunda-feira, 13 de junho de 2011

Neiguan

           Como havia dito, me chamo Gongsun.  Levava uma vida regrada, centrada e simples, até o dia em que Neiguan apareceu em minha porta. Digo isso por força de expressão: terreno baldio não tem porta. De qualquer maneira, meu peito deu abertura. Ela ouviu o povo falar que eu era entendedor de ervas, e então, veio dar aqui no baldio. Logo vi que era moça estudada, de natureza dinâmica. “Sou pesquisadora de ramos terapêuticos e procuro ervas eficazes para o tratamento de distensão mamária pré-menstrual”, falou-me com um ar sério. Fiquei meio sem jeito. Não sou bom para entendimentos. Mas a verdade é que me estimei. Então, convidei-a a se meter pro mato comigo, explorar o terreno. “Essa guria tem o movimento pra fora”, pensei com meus botões. Conversa vai, conversa vem, afirmou ser filha do Embaixador Shan Zhong. “Mas a verdade é que sou colateral de ramo”, me disse com um sorriso zombeteiro. Aí, então, pude vislumbrar a conexão: uma coisa nós tínhamos em comum, como todo colateral, temos inclinações para o profundo.
         Ainda inebriado pela suavidade com que tudo isso acontecia a vi correr até um canto do baldio. Acessou o portão interior. Não para minha surpresa, a encontrei agachada em frente à única flor do terreno.
           - É uma Gruta de Cinábrio! - disse, me puxando para perto da flor. “Na verdade nunca soube que ela tinha nome”, falei sem conseguir desviar os olhos de Neiguan. “Olha como esta aqui está se abrindo” me disse, apontando para um botão entreaberto. Delicadamente, ela levou a ponta dos dedos às comissuras daquela flor e delicadamente afastou as pétalas maiores. Aos poucos, me instruía em cada pequena parte. Pude ver uma pequena saliência que brilhava como uma pérola. Sensível ao menor toque, beijada pelo pouso de insetos vencidos de exalações, aberta ao buliço das abelhas. Aventurei-me pelos labelos menores, delicados, agora entreabertos pelos seus dedos. Naquele dia, havia um cio vegetal na voz de Neiguan. Eu me envesguei para o torpor. Fui incorporado de sépalas.
         Ainda me lembro de observá-la deitada, olhos cerrados, após sorver o frescor branco da noite. Perguntava-me: “O que ela viu em mim?”. Naquele mesmo instante, abriu os olhos como que desperta por meu pensamento. Olhou-me e sorriu preguiçosamente: “Encanta-me com o modo como cuida da flor.” – falou com um sorriso. Disse que eu era bom de poda. Da minha parte, certamente, recebi uma aula de botânica. Tantos detalhes que nunca havia percebido. Era praticamente um beija-flor: entorpecido de estames.
        Como eu vinha dizendo, até ela chegar levava uma vida regrada, centrada. De certa forma até preservando a minha essência. Mas depois daquela aparição... Eu só queria viver de pouso. Uma abelha para labelos vermelhos. Só no afogueio do ministro. Sim, porque ela resolveu passar uma temporada no baldio, e aqui se estabeleceu. Gauche das vias. Seus pertences: um Xin Bao e um LP da Janis (logo fiz dele jogo americano de uma peça só). Até nisso éramos parecidos: nosso único bem era o pertencimento. Juntos éramos bons para tratar excessos.
          E realmente havia algo diferente nessa mulher que ainda tento entender. Fiquei surpreso ao perceber como ela cozinhava bem. Digo isso porque realmente ela tinha uma influência no estômago. Sem contar essa coisa de ter o movimento pra fora: passou a convidar os vizinhos para comer aqui no baldio. De uma hora pra outra virou um ir e vir aqui na área do tórax.  Foi interessante como esse fato transformou a vizinhança. A interação foi tão boa que as relações foram, aos poucos, se transformando: fluíam suaves. E nesse aspecto, ela foi particularmente efetiva com as mulheres. A simples possibilidade de poderem conversar entre si já resolvia qualquer irritabilidade ou depressão de períodos – que tanto incomodavam os homens. Indiretamente ela foi movendo essas estagnações e as rebeliões domésticas foram subjugadas. Ela era mesmo estreita com o coração das pessoas – quando Qi e Xue a viam: “Let´s move”, diziam brincando. Nem preciso dizer que esse seu jeito me despertou para os outros. Dizia-me que isso tinha a ver com suas origens: “Não se esqueça que eu sou natural de Jue Yin” dizia orgulhosa.
           Bem, posso ficar falando dela por horas. E a verdade é que ela prezou minha colateralidade. Mas a coisa mais preciosa que ela me proporcionou nasceu daquela primeira noite no baldio. Uma criatura extraordinária, de espírito ancestral, o nosso pequeno Chong.

sábado, 7 de maio de 2011

Gongsun

Meu nome é Gongsun e moro na província de Pi. Levo uma vida simples e regular. Aqui na província gostam de falar que sou neto do Imperador Amarelo. Dizem: “Lá vai o neto do avô”. Mas a verdade é que sou colateral de ramo. Não denomino importâncias. Vivo num terreno baldio de pequenos ramos de chão. Acordo por volta das cinco e vou para a cama antes das nove. As pessoas rendem mais em horários diferentes do dia, mas eu definitivamente sou do tipo matinal. É nessa hora que tenho mais energia para aproveitar a maré e dar conta do trabalho que tenho para fazer.
Os vizinhos me veem agachado olhando para o chão atrás de ramos diminutos, balançam a cabeça, como quem diz, “perdeu o juízo”. Mas penso que as pessoas precisam realmente estabelecer prioridades na vida, imaginar em que ordem deve dividir seu tempo e sua energia. Estabeleci como prioridade cuidar do baldio. Desde então me ocupo de ramos. Na área do baldio minha ação é ampla. Aqui crescem arbustos de folha caule raiz para o estômago regular. Mas valorizo mesmo os diminutos: aqueles capilares que dão que nem praga. Acho que tenho gosto por insignificâncias. Por cobrirem todo o terreno, resolvi chamá-los sun luo.
Logo no início descobri que arrancá-los fazia sangrar. Dessa forma aprendi a evitar hemorragias. Mas aqui não existem só arbustos e ramos diminutos. Também dá flor. Na verdade é uma única flor. Solitária em meio a cascas grossas de arbustos mal lavados, ela tem algo que a diferencia de todas as flores que podem ser encontradas em qualquer terreno de fim de rua: ela sangra. Todo mês se acostumou. É de natureza mesmo. O que preciso fazer é uma poda bem feita: assim cessam as dores e irregularidades. “Promode num ajunta coáglio”, já dizia o gineceu.
Assim passo meus dias. Não espero que os outros entendam. As pessoas têm seus próprios gostos e antipatias. O que para uns é abandono, para mim é um arrastar-se em conexões cada vez mais profundas. Sinto que, aos poucos, me ramifico outra pessoa. Já ando esquecido daquela tensão no peito. Ou da ansiedade e inquietude que por vezes chegavam a perturbar meu sono. Mas sei que tenho o entendimento desses meninos do mato. Eles sempre aparecem por aqui: gostam de invadir o terreno para obrar. Então eu simulo contrariedade: dessa forma eles continuam voltando. Ainda quando o cago está verde eu faço questão de misturá-lo à terra. O cago têm o dom da nutrição -  além de ser o resultado.
Não sei se por andar descalço na terra, se por ter pegado gosto por lavrar, ou se por andar pisando no obrar dos outros, uma manhã acordei de árvore. Explico: na banda interna do meu pé brotou um ramo. Na verdade dos dois pés. Penso se foi tentativa de ficar enraizado ou de me ligar no profundo. Mas por razões de ir e vir que desconheço, o ramo brotou internamente e logo sua desproporção escapou do terreno chegando até a província de Wei. Os meninos que arrodeavam o baldio acharam graça desse fato. Em pouco pegaram o hábito de pulular seguindo o trajeto do ramo. Penso como isso pode parecer estranho, mas é por essas e outras que sei que sou colateral de ramo. Dessa maneira vejo como é natural que os seres humanos continuam a fazer as coisas de que gostam. É por motivo de árvore que meu ramo faz conexão com o estômago. Assim penso. Cada um com seu trajeto interno.
Mas nas juntas do obrar onde as moscas me governam achei a solidão. Pensava que talvez não fosse um traste que se preze. Assim, acabou que o abandono fez de mim hábito. Até o dia em que recebi uma visita. Fato inédito à exceção dos diminutos. Ela disse ter seguido desde Taibai beirando osso até o pé do morro metatarso, e chegando ao baldio, quando me viu trabalhando a terra, entre a carne branca e a carne vermelha, sentiu que precisava falar comigo. Percebi alguma coisa diferente. Vi meu peito dar abertura. Meu chamo Neiguan – disse com um leve sorriso, a voz levemente rouca e um ar de maestro corazón.