segunda-feira, 13 de junho de 2011

Neiguan

           Como havia dito, me chamo Gongsun.  Levava uma vida regrada, centrada e simples, até o dia em que Neiguan apareceu em minha porta. Digo isso por força de expressão: terreno baldio não tem porta. De qualquer maneira, meu peito deu abertura. Ela ouviu o povo falar que eu era entendedor de ervas, e então, veio dar aqui no baldio. Logo vi que era moça estudada, de natureza dinâmica. “Sou pesquisadora de ramos terapêuticos e procuro ervas eficazes para o tratamento de distensão mamária pré-menstrual”, falou-me com um ar sério. Fiquei meio sem jeito. Não sou bom para entendimentos. Mas a verdade é que me estimei. Então, convidei-a a se meter pro mato comigo, explorar o terreno. “Essa guria tem o movimento pra fora”, pensei com meus botões. Conversa vai, conversa vem, afirmou ser filha do Embaixador Shan Zhong. “Mas a verdade é que sou colateral de ramo”, me disse com um sorriso zombeteiro. Aí, então, pude vislumbrar a conexão: uma coisa nós tínhamos em comum, como todo colateral, temos inclinações para o profundo.
         Ainda inebriado pela suavidade com que tudo isso acontecia a vi correr até um canto do baldio. Acessou o portão interior. Não para minha surpresa, a encontrei agachada em frente à única flor do terreno.
           - É uma Gruta de Cinábrio! - disse, me puxando para perto da flor. “Na verdade nunca soube que ela tinha nome”, falei sem conseguir desviar os olhos de Neiguan. “Olha como esta aqui está se abrindo” me disse, apontando para um botão entreaberto. Delicadamente, ela levou a ponta dos dedos às comissuras daquela flor e delicadamente afastou as pétalas maiores. Aos poucos, me instruía em cada pequena parte. Pude ver uma pequena saliência que brilhava como uma pérola. Sensível ao menor toque, beijada pelo pouso de insetos vencidos de exalações, aberta ao buliço das abelhas. Aventurei-me pelos labelos menores, delicados, agora entreabertos pelos seus dedos. Naquele dia, havia um cio vegetal na voz de Neiguan. Eu me envesguei para o torpor. Fui incorporado de sépalas.
         Ainda me lembro de observá-la deitada, olhos cerrados, após sorver o frescor branco da noite. Perguntava-me: “O que ela viu em mim?”. Naquele mesmo instante, abriu os olhos como que desperta por meu pensamento. Olhou-me e sorriu preguiçosamente: “Encanta-me com o modo como cuida da flor.” – falou com um sorriso. Disse que eu era bom de poda. Da minha parte, certamente, recebi uma aula de botânica. Tantos detalhes que nunca havia percebido. Era praticamente um beija-flor: entorpecido de estames.
        Como eu vinha dizendo, até ela chegar levava uma vida regrada, centrada. De certa forma até preservando a minha essência. Mas depois daquela aparição... Eu só queria viver de pouso. Uma abelha para labelos vermelhos. Só no afogueio do ministro. Sim, porque ela resolveu passar uma temporada no baldio, e aqui se estabeleceu. Gauche das vias. Seus pertences: um Xin Bao e um LP da Janis (logo fiz dele jogo americano de uma peça só). Até nisso éramos parecidos: nosso único bem era o pertencimento. Juntos éramos bons para tratar excessos.
          E realmente havia algo diferente nessa mulher que ainda tento entender. Fiquei surpreso ao perceber como ela cozinhava bem. Digo isso porque realmente ela tinha uma influência no estômago. Sem contar essa coisa de ter o movimento pra fora: passou a convidar os vizinhos para comer aqui no baldio. De uma hora pra outra virou um ir e vir aqui na área do tórax.  Foi interessante como esse fato transformou a vizinhança. A interação foi tão boa que as relações foram, aos poucos, se transformando: fluíam suaves. E nesse aspecto, ela foi particularmente efetiva com as mulheres. A simples possibilidade de poderem conversar entre si já resolvia qualquer irritabilidade ou depressão de períodos – que tanto incomodavam os homens. Indiretamente ela foi movendo essas estagnações e as rebeliões domésticas foram subjugadas. Ela era mesmo estreita com o coração das pessoas – quando Qi e Xue a viam: “Let´s move”, diziam brincando. Nem preciso dizer que esse seu jeito me despertou para os outros. Dizia-me que isso tinha a ver com suas origens: “Não se esqueça que eu sou natural de Jue Yin” dizia orgulhosa.
           Bem, posso ficar falando dela por horas. E a verdade é que ela prezou minha colateralidade. Mas a coisa mais preciosa que ela me proporcionou nasceu daquela primeira noite no baldio. Uma criatura extraordinária, de espírito ancestral, o nosso pequeno Chong.

sábado, 7 de maio de 2011

Gongsun

Meu nome é Gongsun e moro na província de Pi. Levo uma vida simples e regular. Aqui na província gostam de falar que sou neto do Imperador Amarelo. Dizem: “Lá vai o neto do avô”. Mas a verdade é que sou colateral de ramo. Não denomino importâncias. Vivo num terreno baldio de pequenos ramos de chão. Acordo por volta das cinco e vou para a cama antes das nove. As pessoas rendem mais em horários diferentes do dia, mas eu definitivamente sou do tipo matinal. É nessa hora que tenho mais energia para aproveitar a maré e dar conta do trabalho que tenho para fazer.
Os vizinhos me veem agachado olhando para o chão atrás de ramos diminutos, balançam a cabeça, como quem diz, “perdeu o juízo”. Mas penso que as pessoas precisam realmente estabelecer prioridades na vida, imaginar em que ordem deve dividir seu tempo e sua energia. Estabeleci como prioridade cuidar do baldio. Desde então me ocupo de ramos. Na área do baldio minha ação é ampla. Aqui crescem arbustos de folha caule raiz para o estômago regular. Mas valorizo mesmo os diminutos: aqueles capilares que dão que nem praga. Acho que tenho gosto por insignificâncias. Por cobrirem todo o terreno, resolvi chamá-los sun luo.
Logo no início descobri que arrancá-los fazia sangrar. Dessa forma aprendi a evitar hemorragias. Mas aqui não existem só arbustos e ramos diminutos. Também dá flor. Na verdade é uma única flor. Solitária em meio a cascas grossas de arbustos mal lavados, ela tem algo que a diferencia de todas as flores que podem ser encontradas em qualquer terreno de fim de rua: ela sangra. Todo mês se acostumou. É de natureza mesmo. O que preciso fazer é uma poda bem feita: assim cessam as dores e irregularidades. “Promode num ajunta coáglio”, já dizia o gineceu.
Assim passo meus dias. Não espero que os outros entendam. As pessoas têm seus próprios gostos e antipatias. O que para uns é abandono, para mim é um arrastar-se em conexões cada vez mais profundas. Sinto que, aos poucos, me ramifico outra pessoa. Já ando esquecido daquela tensão no peito. Ou da ansiedade e inquietude que por vezes chegavam a perturbar meu sono. Mas sei que tenho o entendimento desses meninos do mato. Eles sempre aparecem por aqui: gostam de invadir o terreno para obrar. Então eu simulo contrariedade: dessa forma eles continuam voltando. Ainda quando o cago está verde eu faço questão de misturá-lo à terra. O cago têm o dom da nutrição -  além de ser o resultado.
Não sei se por andar descalço na terra, se por ter pegado gosto por lavrar, ou se por andar pisando no obrar dos outros, uma manhã acordei de árvore. Explico: na banda interna do meu pé brotou um ramo. Na verdade dos dois pés. Penso se foi tentativa de ficar enraizado ou de me ligar no profundo. Mas por razões de ir e vir que desconheço, o ramo brotou internamente e logo sua desproporção escapou do terreno chegando até a província de Wei. Os meninos que arrodeavam o baldio acharam graça desse fato. Em pouco pegaram o hábito de pulular seguindo o trajeto do ramo. Penso como isso pode parecer estranho, mas é por essas e outras que sei que sou colateral de ramo. Dessa maneira vejo como é natural que os seres humanos continuam a fazer as coisas de que gostam. É por motivo de árvore que meu ramo faz conexão com o estômago. Assim penso. Cada um com seu trajeto interno.
Mas nas juntas do obrar onde as moscas me governam achei a solidão. Pensava que talvez não fosse um traste que se preze. Assim, acabou que o abandono fez de mim hábito. Até o dia em que recebi uma visita. Fato inédito à exceção dos diminutos. Ela disse ter seguido desde Taibai beirando osso até o pé do morro metatarso, e chegando ao baldio, quando me viu trabalhando a terra, entre a carne branca e a carne vermelha, sentiu que precisava falar comigo. Percebi alguma coisa diferente. Vi meu peito dar abertura. Meu chamo Neiguan – disse com um leve sorriso, a voz levemente rouca e um ar de maestro corazón.

Tianshu

                 
A constelação da Ursa Polar tem sete estrelas. Olhando para cima, a primeira estrela do norte é Tianshu. Com os pés fincados na terra o homem se estica até a ponta dos dedos e com um pouco de esforço é capaz de alcançar Tianshu. Tal hábito foi desenvolvido pelos habitantes de Wei. Mas dos quarenta e cinco habitantes, o vigésimo quinto nunca havia relado o dedo na estrela – visto que era fraco de altura. Viviam caçoando dele e o apelidaram Xiao[1].
– É um olhar para baixo que eu nasci tendo – pensou Xiao. – Eu, uma criatura da terra, livre e seguro, pareço estar ligado a uma corrente suficientemente longa para percorrer toda a imensidão sob seus pés, sem restrições. No entanto, é longa apenas na medida em que não permite ir além dos confins da terra.
          Acima de sua cabeça uma leve bruma ganhava peso. O vento, com suas mãos invisíveis e de maneira imperceptível, retém as nuvens que, aos poucos, vão tomando forma. À medida que as nuvens se apertavam, as estrelas iam se recolhendo, até desaparecerem. Na direção oeste, densas nuvens prometiam nutrição e bênçãos à terra. Mas, por ora, não haveria chuva.
          – É um olhar para cima que eu nasci tendo – percebeu Xiao. – Sou capaz de cavalgar as nuvens, levado pelo vento no vai e vem do espírito, em vôo frágil e cheio de luz. O vento pode reunir as nuvens no céu, mas sendo apenas ar, sem corpo sólido, não é capaz de produzir a duração. Eu, criatura do céu, se desejo descer à terra, sou sufocado pela corrente celeste presa a meu pescoço, como uma coleira. E, não obstante, tenho todas as possibilidades e assim o sinto.
          Como pode o homem formar o eixo, a comunicação entre as duas energias, os dois movimentos? Conhecer o que separa o puro do impuro? Xiao vivenciou tempos obscuros, tinha a impressão de que as situações difíceis e inflexíveis o perseguiam. Sua luta interna o levou ao que parecia ser um “tempo de estancamento”. Céu e Terra pareciam incapazes de se comunicar. A respiração do Céu se elevou e a respiração da Terra afundou. Foi o inverno da alma.  
          Xiao resolveu fazer o que lhe cabia: ser pequeno. Deixou de observar a situação e aos poucos pôde recobrar a calma. Com a força do céu, perseverou em seus princípios e redescobriu o poder da claridade. Com a força da terra, sua mente receptiva e aberta vislumbrou suas idéias decadentes. Um velho fantasma precisava ser sacrificado. Fez das velhas idéias sua vítima sacrificial. Oferecendo o velho fantasma aos ancestrais, dançou e cantou. Por um tempo indeterminado entoou a máxima pi ji tai lai. De repente, um sopro com aroma de terra veio do céu e lhe cochichou um segredo. Xiao olhou para seu umbigo. O tocou com o dedo. E com a ponta do indicador deslizou por seu ventre formando uma linha imaginária. Lá estava o eixo. Eis o homem. Céu e Terra fluiram convergentes e o sacro ancorou. Na fronteira do indiferenciado, Xiao encontrou Tianshu.
          Em paz, se lembrou daqueles a que estava ligado por conexões interiores. Eram suas raízes. Aos poucos, desceu em vôo rasteiro, em adejar simples e sincero. Alguns o ouviram atentamente. No início, não entenderam direito, mas Xiao era bom para esclarecimentos. Sob olhares curiosos, explicava:
– Olha, é só abaixar a cabeça. Tá vendo o umbigo? Bem ali a terra beira o céu! Partindo do umbigo, o horizonte se estica. Acima brilha o céu. Abaixo cheira a terra. Agora é só transversar para os lados e o eixo se forma. O puro sobe a cavidade. O turvo desce sinuoso. Tianshu fica no horizonte do homem. Toquem a estrela.”
Aos poucos, seus próximos começaram a entendê-lo. Não demorou para que compreendessem as ações de Tianshu. Digo isso porque, na província de Wei, vez por outra acontecia de o horizonte se confundir. Nubladas, as pessoas podiam ver os primeiros meteorismos correrem descontrolados no horizonte. Nessas horas, Xiao intervinha: esticava o horizonte a dois cun do umbigo e prendia cada ponta em uma agulha, assim os meteorismos acabavam. Satisfeitos, os habitantes passaram a procurar Xiao. Logo pôde resolver as várias desarmonias de Wei. Chegavam distendidos e até mesmo pastosos, e de várias outras queixas de obrar. Não demorou para que também ficasse conhecido na província de Pi – visto que seus horizontes se acoplavam.
Aos poucos, o trabalho de Xiao aumentou. Mas, com trânsito livre na província de Pi, pôde esticar o horizonte numa grande transversal até Daheng que fica lá pras bandas do mesentério. Mas os habitantes de Wei, viscerais pastores da terra, ficavam enciumados. E agora, firmes no obrar, faziam questão de repetir que é em Tianshu que o intestino grosso faz mu.


[1] Xiao: pequeno


sábado, 12 de março de 2011

Zhuang Zi



El gran Saber todo lo abarca
El pequeño todo lo divide.
Las grandes palavras son fuego.
Las pequeñas, balbuceos inútiles.
Durante el sueño,
las almas de los hombres
se funden, se entremezclan.
En la vigilia,
los cuerpos se despiertan y se animan.
En el contacto con las cosas,
el corazón del hombre se enreda y lucha:
prudencia, astucia, calma.
Los pequeños miedos le inquietan.
Los grandes le paralizan.
Rápido como una flecha
se lanza a distinguir la verdad de la mentira.
Obstinado como el que ciegamente jura
y se aferra a la victoria.
Igual que en otoño e invierno,
se apagan los días del hombre.
En el mar de sus actos, ya hundido,
nada puede hacerle emerger.

Su corazón lacrado se marchita,
Así llega a la vejez,
hacia la muerte.
Su luz ya no renace.
Alegría, cólera,
tristeza, placer,
lamento, inquietud,
inconstancia, perseverancia,
descuido, ligereza
insolencia, afectación.
Música que brota del silencio.
Hongos que nacen de la humedad.
Los días se alternan con las noches;
nadie sabe el cómo ni el porqué.
¡Basta, basta!
¿Acaso podemos conocer
el origen de todo lo que cabe
entre un día y una noche?

Sin lo otro, no hay yo.
Sin el yo, nada se manifiesta.
Sí, cerca estamos del origen,
pero desconocemos Aquello
que todo lo hace y lo comienza.
Quizás haya un Dueño verdadero:
ninguna traza hay de su existencia.
Real, pero invisible.
Creemos en sus actos
aunque no vemos su figura.

De los cien huesos de que un cuerpo se compone,
de los nueve orificios, de las seis vísceras,
¿cuál es el más amado?             
¿Se les ama a todos por igual?
¿Hay alguna preferencia?
¿Son todos ellos amos?
¿O se altenan en su poder
como servidor y soberano?
¿Hay entre ellos un Dueño verdadero?
Aunque lo hubiera,
nuestra ignorancia de él,
nuestro conocimiento de él,
no afectarían en nada a su auténtica Verdad.

Cuando una forma nos ha sido dada,
persiste hasta que la vida se agota.
Nos cortamos con el filo de las cosas.
Nos evitamos mutuamente.
Veloces como caballos galopando.
Incontenibles. ¿No es una lástima?
Esforzarse sin ver el fruto del trabajo.
Agotarse y no saber a dónde regresar.
¿No es triste?
Ser imortales ¿para qué?
El cuerpo se corrompe,
así también el espíritu.
¿Podemos negar ese inmenso dolor?
¿La vida del hombre es tan absurda?
¿O es que soy el único que lo piensa,
yo, el más absurdo de entre todos?


(Extraído de Los Capítulos Interiores de Zhuang Zi. Editorial Trotta. Traducción de Pilar González España y Jean Claude Pastor-Ferrer)

sexta-feira, 4 de março de 2011

O encontro de Confúcio e o velho Dan


 

Elimínese la inteligencia, rechácense las argumentaciones,
y las gentes obtendrán beneficios cien veces mayores.
Elimínese la hipocresía, rechácese el fingimiento
y las gentes retornarán a la piedad filial y al amor.
                                                                                                             
Tao Te Ching, XIX[i].


          À medida que adentrava a capital de Zhou, Confúcio podia sentir seu coração se encher de expectativas. Já era respeitado por sua erudição. Seu nome circulava entre os nobres do Reino de Lu. Acreditava que em pouco tempo algum governante esclarecido lhe daria uma oportunidade. “Sei que todos podem se educar nos ritos e na cultura”, repetia para si mesmo. “A única forma de pôr um fim nessa decadência dos costumes é a retomada dos ritos, tal como nos tempos áureos do governo de Zhou.” Sentia que estava conectado com a vontade do Céu.
          Em Zhou, desejava conhecer um ancião que diziam ser um homem de grande sabedoria conhecido como o velho Dan. Naquela manhã, foi ao seu encontro perguntar acerca dos ritos. Como sempre, seus discípulos o seguiam aonde quer que fosse. Ao chegarem ao destino Confúcio pediu que fosse anunciado a Lao Dan[ii]. Fez um sinal para que seus discípulos aguardassem a uma distância razoável da morada. Não queria que a movimentação o incomodasse. Chamado a entrar, transpôs o portal e caminhou com discrição até uma pequena sala. Logo pôde ver um velho sentado no fundo da sala, talhando uma pequena tabuleta de bambu. Prontamente, adotou uma expressão de gravidade. Inclinando-se, juntou as mãos cerradas à frente da cabeça formando um arco. Seu manto, que parecia vivo, acompanhava o movimento de seu corpo. O velho ergueu a cabeça e viu Confúcio, as mãos ocultas sob o manto, em reverência. Permaneceu na postura por alguns segundos. Com resolução, Confúcio ergueu o olhar em direção ao velho, recolheu os braços para trás da cintura, as mangas agitavam-se como asas. Em uma fala eloquente, mas sem perder certo ar circunspecto, interrogou ao velho acerca dos ritos.
          O velho, que até então só observava, lhe disse:
- Todo vosso ensino não passa de palavras ditas por homens que há muito desapareceram junto a seus ossos. Quando um homem virtuoso se acomoda a seu tempo marcha em carruagem, e quando não, se move sem rumo levado pelo vento. Ouvi dizer que um bom comerciante guarda tão bem sua mercadoria que aparenta não ter nenhuma, e que o homem virtuoso, de grandes qualidades, parece um estúpido. Suprime vossa arrogância e vossa ambição, vossa obsequiosidade e vossa lascívia: tudo isso não favorece em nada vossa pessoa. Isso é tudo o que tenho a lhe dizer.
          Confúcio se retirou. Do lado de fora, seus discípulos afetaram expectativas ao ver seu Mestre retornar. Yan Hui logo lhe interrogou sobre a conversa.
           Confúcio disse:
- Sei que um pássaro voa, que um peixe nada, que um animal anda; para o que anda, posso fazer uma armadilha; para o que nada, posso fazer um anzol; para o que voa, posso fazer arcos e flechas. Quanto ao dragão, no entanto, escapa a minha inteligência o modo como se eleva ao céu montado no vento e nas nuvens. Depois de vê-lo hoje, penso se o Mestre Lao não será como um dragão.
          O velho Dan cultivou o Tao e sua virtude. Baseou sua doutrina em viver ignorado, sem renome algum.



(As falas de Lao Dan e Confúcio são da versão de Sima Qian, o primeiro grande historiador da China antiga, e podem ser encontradas no Lao zi liezhuan do Shi Ji  (Registros históricos. Utilizei a tradução de Iñaki Preciado Idoeta. O modo como Confúcio agia em atos oficiais, religiosos e sociais – os ritos - é descrito no Capítulo 10 dos Analectos).

[i] Tao Te Ching. Los libros del Tao. Lao Tse. Editora Trotta. Madrid, 2010. Edicíon y traducción del chino de Iñaki Preciado Idoeta. O trecho é uma tradução do Lao zi de Guodian.
[ii] Lao Dan: o velho Dan.



Boyi, o menino que compreendia os animais

          No meio do mato vive um menino que se chama Boyi. Há tempos saiu de casa e caiu no galho de aprender palavra de ave. Levava a vida na flauta e se meteu com todo canto. Quadrupiava metido no mato até que ficou versado em árvore. Gostava de perder tempo conversando com o corvo de três patas. O corvo, que era fiado no bico, mostrou a Boyi a planta Diri. Falou que quem a comesse não envelheceria. Isso explica o menino nunca ter crescido. Dos frutos preferia encaixar bunda de formiga entre os dentes. Larvas gordas tinham um gosto de tronco de côco.
          E assim, despreocupado de palavras vivia de pedra em pedra quando do galho descia. Até que o mundo se encheu de água. Uma grande inundação deixou poucas terras secas e os animais começaram a se meter entre as pessoas. Logo, uns atacavam os outros. As pessoas ficavam sem os pedaços da carne que as feras arrancavam. Era cada bifão. Feridas de garras e bosteadas de ave, as pessoas iam se queixar ao Imperador Yao. Diante do caos, este chamou Yu, o Grande, e confessou suas intenções de atear fogo nas áreas secas para espantar as bestas selvagens. Yu, humildemente afirmou que a medida não era adequada, mas que conhecia alguém que seria capaz de pacificar as relações entre os homens e os outros animais. “Há de ser Boyi” garantiu Yu. “O menino compreende a linguagem das aves e é conhecido por adestrar animais selvagens”. De pronto, saiu no encalço do garoto.
          Depois de uns dias rasgando mato, encontrou-o empoleirado em galho. Ao saber das intenções do Imperador o menino ficou arara. Gralhou a lógica imperativa e gorjeou suas razões de bicho. Yu não entendeu a prosa de passarinho, mas soube que o garoto ajudaria. E o menino fez do seu jeito. Lembrou de cabra gente boa que conhecia e, então, lhe pediu ajuda. Zelosa como era, cabra disse que levaria Boyi para conversar com o Javali. Conhecido por sua honestidade era muito benquisto até mesmo entre os mais selvagens. Assim, a cabra cedeu acento ao menino e saíram atrás.
          Encontrara Javali com a barriga pra cima, todo esparramado. Ao escutar o motivo da visita, prontamente, o Javali garantiu que os desentendimentos acabariam. Logo mandou que abrissem um vinho e chamou outros animais para comer e beber. Os bichos foram chegando às patotas. Em pouco tempo, estavam todos rindo e satisfeitos. Todos concordaram evitar desentendimentos com o animal humano. A Cabra, que apreciava um bom vinho, contava uns caso. Entre um e outro cigarro de palha, o Tigre, poeta que era, tomava a palavra para lavrar. E assim, viraram a noite na farra. E Boyi? Menino que era, dormiu na primeira hora. Desmaiado que nem bicho de pé num canto.
          No dia seguinte, quando manhã cheirou cangote de Boyi, ele já tava de pé dando chute em canela de formiga. Mas teve bicho que dormiu o dia inteiro. O silêncio na mata foi tão grande que os murmúrios logo chegaram ao ouvido do Imperador. Boyi conseguira trazer a paz entre as pessoas e os outros animais. E assim mesmo, do jeito que era, o menino ficou. Não entendia das confusões do mundo. Mas sabia que nada há para ser entendido.[i]



[i] Os anos se passaram e Boyi nunca mais foi visto naquelas regiões. Caiu no mundo. Dizem que passou uma vida em Mato Grosso e o chamavam Bernardo. Suas meninices inspiraram um poeta a copiar sua fala e escrever um Compêndio para uso dos pássaros.

(O texto é uma versão livre. Os fragmentos a respeito do mito Boyi podem ser encontrados em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de Barcelona, 2004. Edição e tradução de Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal. Outras fontes: São Paulo: Andreoli, 2010. Maspero, Henri. El taoísmo y las religiones chinas. Trotta: 2000.)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O Barco Vazio


 

Abandona o desejo de ser importante;
não permita que tuas pegadas deixem rastros.
Viaja só, como o Tao,
para a terra do grande silêncio.

Se um homem estiver cruzando um rio
e um barco vazio colidir com o seu,
Por mais mal-humorado que seja,
Ele não vai se ofender nem ficar irado.
Mas se o barco for tripulado,
talvez ele se encolerize, grite e xingue,
só porque há um remador.

Enquanto cruzas o rio do mundo,
percebe que todos os barcos estão vazios,
e nada poderá te ofender.



(Texto de Zhuang Zi extraído de O segundo livro do Tao. Stephen Mitchel. Rio de Janeiro: Nova Era, 2010.)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Hou Yi, O Arqueiro e a grande seca

            No país de Xihe, flui um rio chamado Gan. Suas águas alcançam as zonas estrangeiras até o ocidente, mas é no vale de Tang que em meio à água cresce uma enorme árvore chamada Fusang. Em seus galhos vivem dez corvos e em cada um brilha um sol. Acima de seus galhos vive um sol e abaixo dormem nove corvos, de maneira que, enquanto um corvo vai sol em pleno vôo, os outros nove se empoleiram na sombra, embaixo dos galhos.
            E assim, sempre que um corvo subia até a copa a luz da manhã surgia iluminando o vale. Logo alçava voo até o sol ficar a bico, e nem se via mais o pretume da asa. Depois de voar o dia inteiro o corvo ficava todo entardecer. Pousava às margens do Gan e se beijava de água sacudindo as asas. A isso deram o nome de crepúsculo. De cabeça fria pulava em um galho e esticava escuro para secar as asas. E ali ficava dias - porque sol quando se molha de rio demora dias para amanhecer.
Durante a noite, o Gan escorria sob os lençóis e, suaves, suas águas se voltavam para as zonas interiores de Zang levando sob a terra o que o sol deixou no banho. Mas no dia seguinte outro corvo despertava para repetir a jornada. Assim os corvos iam e viam, revezando suas penas a cada dia.
Tudo ia bem até que uma vez, nos tempos em que Yao era imperador, aconteceu de saírem os dez sóis de uma vez. Era tanto sol que todas as sombras se esconderam não se sabe onde. A pele da terra rachou. Os rios pastaram até não encontrar o que comer. Logo secavam. Os animais viraram caveiras sorridentes de poça. O calor sobre as casas foi tão grande que até deu na telha trincar de sede. E os dez sóis latejaram o topo do céu. As veias pulavam e as pessoas se perguntavam o que tinha dado na cabeça de corvo. Alguns chegaram a dizer que corvo tinha voado fora da asa e atravessado a janela do céu.
Yao mandou então que Hou Yi, o Arqueiro, derrubasse os corvos a flechadas. Como sabia que era o melhor na arte de cortar o vento, Hou Yi aceitou a tarefa e saiu atrás deles. Em campo aberto, tencionou seu arco. As penas da flecha roçaram seu rosto enquanto visava o corvo flamejante. Mas a luz o ofuscava. Não conseguia uma mira precisa. Tentou disparar algumas flechas mas não acertou nenhuma. O calor sugava seu espírito. Tentou febrilmente durante horas. Por fim, a luz queimou seus olhos. A ânsia o cegara. Por alguns instantes caiu desesperado. De que serve um arqueiro cego?
 E na mais negra escuridão Hou Yi permaneceu. Ajoelhado, entregou seu espírito à terra seca. E então, uma pequena luz. Uma pequena abertura. Uma pequena humildade. Sua mente se abriu livre dos próprios pensamentos. Naquele instante não buscou o sucesso. Não evitou o fracasso. Não havia distinções entre ele e o mundo. Pairava acima do sol e da lua. Levava o universo na ponta de sua flecha. E então, levantou-se. Cego como o vento esticou seu arco e disparou. Acertou bem no corvo do sol. E assim, sem esforço, nove sóis foram abatidos, espalhando penas de si para todos os lados. No final das contas sobrou um sol.
Com espírito tranqüilo, Hou Yi se banhou no Gan e soube que naquele momento, ao cair da tarde, os primeiros raiozinhos de sombra rastejavam desconfiados para fora do dia.

(O texto é uma versão livre. Os fragmentos a respeito do mito de Hou Yi podem ser encontrados em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de Barcelona, 2004. Edição e tradução de Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal. Outras fontes: São Paulo: Andreoli, 2010. Maspero, Henri. El taoísmo y las religiones chinas. Trotta: 2000.)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Zhuang Zi



Zhuang Zi pescava no rio P’u, quando dois altos funcionários chegaram em nome do Rei de Ch’u e disseram:
- Senhor, o rei pede que venha à capital e sirva como seu primeiro-ministro.
Sem virar a cabeça, Zhuang Zi respondeu:
- Ouvi falar que em Ch’u há uma tartaruga sagrada que morreu três mil anos atrás. O rei mantém seu casco no templo, envolto em seda e guardado numa caixa de ouro. Ora, se vocês fossem essa tartaruga, prefeririam ser venerados desse modo ou estar vivos outra vez, rastejando na lama?
- A última hipótese, com certeza – disseram os funcionários.
- Enviem meus cumprimentos a Sua Majestade e digam-lhe que estou feliz aqui mesmo, rastejando na lama – disse Zhuang Zi.

O fabricante de rodas


 
O Duque Huan lia um livro na extremidade superior do salão. Pien, o fabricante de rodas, fazia uma roda na extremidade inferior. Largando seu martelo e formão, ele foi até lá e disse:
- Vossa Graça, permite-me perguntar o que estais lendo?
- As palavras dos sábios – disse o duque.
- Esses sábios ainda estão vivos?
- Não, há muito que já morreram.
- Então o que ledes são apenas restos deixados para trás.
- Como ousas fazer tal comentário sobre o que estou lendo?! – gritou o duque. – Explica-te ou morres!
- Certamente, Vossa Graça – disse o fabricante de rodas. – Eis como vejo isso. Quando trabalho numa roda, se bater no formão com muita suavidade, ele desliza e não agarra. Mas se eu bater no formão com muita força, ele fica preso na madeira. Quando a batida não é muito suave nem muito forte, eu sei; minhas mãos conseguem sentir. Não há modo que me permita descrever esse ponto de equilíbrio perfeito. Ninguém me ensinou e não posso ensinar ao meu filho. Já faz setenta anos que pratico meu ofício e nunca serei capaz de passá-lo adiante. Quando os velhos sábios morreram, levaram consigo o que sabiam. Foi por isso que eu disse que o que ledes são apenas restos deixados para trás.

(Texto de Zhuang Zi extraído de O segundo livro do Tao. Stephen Mitchel. Rio de Janeiro: Nova Era, 2010.)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011


Yu e a abertura dos canais

               Nos tempos antigos, vez por outra os rios transbordavam. Mas quando Yao era imperador na terra, o mundo sumiu sob as águas. A água era tanta que estremeceu a voz do povo: “É o dilúvio!”. Depois que as águas romperam os leitos dos rios, no corpo do mundo só havia umidade.  Onde crescia uma variedade de grãos só havia pântano. Desterrados animais selvagens se voltavam contra as pessoas. Acuadas em suas casas, vozes obstruíam os buracos das paredes e mofavam os espíritos. O caos tomou conta do povo amarelo.
                Na ânsia de conter a inundação Gun pegou da Argila que se Expande[i] e construiu diques, como nos anos anteriores. Não deu jeito. Por havê-la tomado sem permissão, o Imperador do Céu mandou matar Gun, que foi sacrificado no Monte das Penas. Morto, seu estômago se abriu e dele saiu Yu.
Sem prolongar os castigos e as penas, o Imperador do Céu ordenou a Yu que colocasse o mundo fora de perigo. Yu repensou a situação. Então desfez os diques de argila e convocou um grande número de deidades em um monte para traçar seu grande plano. Designou tarefas e iniciou o trabalho de abrir canais para drenar as águas.
               Caiu no mundo pisando lama. Durante anos trabalhou sem descanso. Passou grandes dificuldades. Bebeu e comeu do simples. Mas o trabalho era enorme e Yu definhou. Era só osso. E cavou terra. A devoção ao trabalho o deixou manco. Mas empregando todas as suas forças seguiu na labuta. Percorreu o mundo mancando cambito. Em seu caminho arrumou mulher e um filho. Dizem que na primeira vez que sua mulher viu todo osso, ela falou: “Olha que o tutano até que dá um caldo!”. E de osso Yu fez uma criança. Mas passou tanto tempo fora de casa que só conheceu filho crescido. Durante esses anos Yu aprendeu a viver do eterno ajuste.
              Com o Dragão Amarelo arrastando a cauda à sua frente, abriu vias extraordinárias para reconduzir os leitos. E após nove anos, logrou domar as águas. Realizado o trabalho, Yu se encontrava sentado olhando o rio Amarelo, quando viu emergir um rosto branco unido a um corpo de peixe. “Sou o espírito do rio Amarelo”, disse a Yu, e de pronto lhe entregou um mapa das vias das águas, suas convergências e divergências. E então, voltou ao rio e desapareceu.
             Yu pôde falar sobre a engenharia dos canais aos camponeses. Ensinou-lhes sobre a via das águas. E dessa maneira, deu ferramentas aos camponeses para que pudessem realizar os próprios ajustes em seus campos de grãos.
 Por sua virtude, Yu se tornou o fundador da Dinastia Xia e ficou conhecido como Yu, o Grande[ii]. Hoje em dia, quando o céu ameaça desabar sobre a terra, sacrifícios são feitos ao espírito de Yu. Em transe, os homens dançam horas sem parar. Imitam o seu mancar e atravessam a noite no passo de Yu.

(Adaptação livre de diversos fragmentos a respeito da lenda de Yu e do que ficou conhecido como a Grande Inundação. Os fragmentos foram compilados, editados e traduzidos por Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de


[i]A Argila que se Expande era um tipo de terra que aumentava e crescia infinitamente, daí Gun tê-la usado para tentar conter as águas.

[ii] Ou ainda: Da Yu.