segunda-feira, 13 de junho de 2011

Neiguan

           Como havia dito, me chamo Gongsun.  Levava uma vida regrada, centrada e simples, até o dia em que Neiguan apareceu em minha porta. Digo isso por força de expressão: terreno baldio não tem porta. De qualquer maneira, meu peito deu abertura. Ela ouviu o povo falar que eu era entendedor de ervas, e então, veio dar aqui no baldio. Logo vi que era moça estudada, de natureza dinâmica. “Sou pesquisadora de ramos terapêuticos e procuro ervas eficazes para o tratamento de distensão mamária pré-menstrual”, falou-me com um ar sério. Fiquei meio sem jeito. Não sou bom para entendimentos. Mas a verdade é que me estimei. Então, convidei-a a se meter pro mato comigo, explorar o terreno. “Essa guria tem o movimento pra fora”, pensei com meus botões. Conversa vai, conversa vem, afirmou ser filha do Embaixador Shan Zhong. “Mas a verdade é que sou colateral de ramo”, me disse com um sorriso zombeteiro. Aí, então, pude vislumbrar a conexão: uma coisa nós tínhamos em comum, como todo colateral, temos inclinações para o profundo.
         Ainda inebriado pela suavidade com que tudo isso acontecia a vi correr até um canto do baldio. Acessou o portão interior. Não para minha surpresa, a encontrei agachada em frente à única flor do terreno.
           - É uma Gruta de Cinábrio! - disse, me puxando para perto da flor. “Na verdade nunca soube que ela tinha nome”, falei sem conseguir desviar os olhos de Neiguan. “Olha como esta aqui está se abrindo” me disse, apontando para um botão entreaberto. Delicadamente, ela levou a ponta dos dedos às comissuras daquela flor e delicadamente afastou as pétalas maiores. Aos poucos, me instruía em cada pequena parte. Pude ver uma pequena saliência que brilhava como uma pérola. Sensível ao menor toque, beijada pelo pouso de insetos vencidos de exalações, aberta ao buliço das abelhas. Aventurei-me pelos labelos menores, delicados, agora entreabertos pelos seus dedos. Naquele dia, havia um cio vegetal na voz de Neiguan. Eu me envesguei para o torpor. Fui incorporado de sépalas.
         Ainda me lembro de observá-la deitada, olhos cerrados, após sorver o frescor branco da noite. Perguntava-me: “O que ela viu em mim?”. Naquele mesmo instante, abriu os olhos como que desperta por meu pensamento. Olhou-me e sorriu preguiçosamente: “Encanta-me com o modo como cuida da flor.” – falou com um sorriso. Disse que eu era bom de poda. Da minha parte, certamente, recebi uma aula de botânica. Tantos detalhes que nunca havia percebido. Era praticamente um beija-flor: entorpecido de estames.
        Como eu vinha dizendo, até ela chegar levava uma vida regrada, centrada. De certa forma até preservando a minha essência. Mas depois daquela aparição... Eu só queria viver de pouso. Uma abelha para labelos vermelhos. Só no afogueio do ministro. Sim, porque ela resolveu passar uma temporada no baldio, e aqui se estabeleceu. Gauche das vias. Seus pertences: um Xin Bao e um LP da Janis (logo fiz dele jogo americano de uma peça só). Até nisso éramos parecidos: nosso único bem era o pertencimento. Juntos éramos bons para tratar excessos.
          E realmente havia algo diferente nessa mulher que ainda tento entender. Fiquei surpreso ao perceber como ela cozinhava bem. Digo isso porque realmente ela tinha uma influência no estômago. Sem contar essa coisa de ter o movimento pra fora: passou a convidar os vizinhos para comer aqui no baldio. De uma hora pra outra virou um ir e vir aqui na área do tórax.  Foi interessante como esse fato transformou a vizinhança. A interação foi tão boa que as relações foram, aos poucos, se transformando: fluíam suaves. E nesse aspecto, ela foi particularmente efetiva com as mulheres. A simples possibilidade de poderem conversar entre si já resolvia qualquer irritabilidade ou depressão de períodos – que tanto incomodavam os homens. Indiretamente ela foi movendo essas estagnações e as rebeliões domésticas foram subjugadas. Ela era mesmo estreita com o coração das pessoas – quando Qi e Xue a viam: “Let´s move”, diziam brincando. Nem preciso dizer que esse seu jeito me despertou para os outros. Dizia-me que isso tinha a ver com suas origens: “Não se esqueça que eu sou natural de Jue Yin” dizia orgulhosa.
           Bem, posso ficar falando dela por horas. E a verdade é que ela prezou minha colateralidade. Mas a coisa mais preciosa que ela me proporcionou nasceu daquela primeira noite no baldio. Uma criatura extraordinária, de espírito ancestral, o nosso pequeno Chong.