quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O Barco Vazio


 

Abandona o desejo de ser importante;
não permita que tuas pegadas deixem rastros.
Viaja só, como o Tao,
para a terra do grande silêncio.

Se um homem estiver cruzando um rio
e um barco vazio colidir com o seu,
Por mais mal-humorado que seja,
Ele não vai se ofender nem ficar irado.
Mas se o barco for tripulado,
talvez ele se encolerize, grite e xingue,
só porque há um remador.

Enquanto cruzas o rio do mundo,
percebe que todos os barcos estão vazios,
e nada poderá te ofender.



(Texto de Zhuang Zi extraído de O segundo livro do Tao. Stephen Mitchel. Rio de Janeiro: Nova Era, 2010.)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Hou Yi, O Arqueiro e a grande seca

            No país de Xihe, flui um rio chamado Gan. Suas águas alcançam as zonas estrangeiras até o ocidente, mas é no vale de Tang que em meio à água cresce uma enorme árvore chamada Fusang. Em seus galhos vivem dez corvos e em cada um brilha um sol. Acima de seus galhos vive um sol e abaixo dormem nove corvos, de maneira que, enquanto um corvo vai sol em pleno vôo, os outros nove se empoleiram na sombra, embaixo dos galhos.
            E assim, sempre que um corvo subia até a copa a luz da manhã surgia iluminando o vale. Logo alçava voo até o sol ficar a bico, e nem se via mais o pretume da asa. Depois de voar o dia inteiro o corvo ficava todo entardecer. Pousava às margens do Gan e se beijava de água sacudindo as asas. A isso deram o nome de crepúsculo. De cabeça fria pulava em um galho e esticava escuro para secar as asas. E ali ficava dias - porque sol quando se molha de rio demora dias para amanhecer.
Durante a noite, o Gan escorria sob os lençóis e, suaves, suas águas se voltavam para as zonas interiores de Zang levando sob a terra o que o sol deixou no banho. Mas no dia seguinte outro corvo despertava para repetir a jornada. Assim os corvos iam e viam, revezando suas penas a cada dia.
Tudo ia bem até que uma vez, nos tempos em que Yao era imperador, aconteceu de saírem os dez sóis de uma vez. Era tanto sol que todas as sombras se esconderam não se sabe onde. A pele da terra rachou. Os rios pastaram até não encontrar o que comer. Logo secavam. Os animais viraram caveiras sorridentes de poça. O calor sobre as casas foi tão grande que até deu na telha trincar de sede. E os dez sóis latejaram o topo do céu. As veias pulavam e as pessoas se perguntavam o que tinha dado na cabeça de corvo. Alguns chegaram a dizer que corvo tinha voado fora da asa e atravessado a janela do céu.
Yao mandou então que Hou Yi, o Arqueiro, derrubasse os corvos a flechadas. Como sabia que era o melhor na arte de cortar o vento, Hou Yi aceitou a tarefa e saiu atrás deles. Em campo aberto, tencionou seu arco. As penas da flecha roçaram seu rosto enquanto visava o corvo flamejante. Mas a luz o ofuscava. Não conseguia uma mira precisa. Tentou disparar algumas flechas mas não acertou nenhuma. O calor sugava seu espírito. Tentou febrilmente durante horas. Por fim, a luz queimou seus olhos. A ânsia o cegara. Por alguns instantes caiu desesperado. De que serve um arqueiro cego?
 E na mais negra escuridão Hou Yi permaneceu. Ajoelhado, entregou seu espírito à terra seca. E então, uma pequena luz. Uma pequena abertura. Uma pequena humildade. Sua mente se abriu livre dos próprios pensamentos. Naquele instante não buscou o sucesso. Não evitou o fracasso. Não havia distinções entre ele e o mundo. Pairava acima do sol e da lua. Levava o universo na ponta de sua flecha. E então, levantou-se. Cego como o vento esticou seu arco e disparou. Acertou bem no corvo do sol. E assim, sem esforço, nove sóis foram abatidos, espalhando penas de si para todos os lados. No final das contas sobrou um sol.
Com espírito tranqüilo, Hou Yi se banhou no Gan e soube que naquele momento, ao cair da tarde, os primeiros raiozinhos de sombra rastejavam desconfiados para fora do dia.

(O texto é uma versão livre. Os fragmentos a respeito do mito de Hou Yi podem ser encontrados em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de Barcelona, 2004. Edição e tradução de Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal. Outras fontes: São Paulo: Andreoli, 2010. Maspero, Henri. El taoísmo y las religiones chinas. Trotta: 2000.)