sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Zhuang Zi



Zhuang Zi pescava no rio P’u, quando dois altos funcionários chegaram em nome do Rei de Ch’u e disseram:
- Senhor, o rei pede que venha à capital e sirva como seu primeiro-ministro.
Sem virar a cabeça, Zhuang Zi respondeu:
- Ouvi falar que em Ch’u há uma tartaruga sagrada que morreu três mil anos atrás. O rei mantém seu casco no templo, envolto em seda e guardado numa caixa de ouro. Ora, se vocês fossem essa tartaruga, prefeririam ser venerados desse modo ou estar vivos outra vez, rastejando na lama?
- A última hipótese, com certeza – disseram os funcionários.
- Enviem meus cumprimentos a Sua Majestade e digam-lhe que estou feliz aqui mesmo, rastejando na lama – disse Zhuang Zi.

O fabricante de rodas


 
O Duque Huan lia um livro na extremidade superior do salão. Pien, o fabricante de rodas, fazia uma roda na extremidade inferior. Largando seu martelo e formão, ele foi até lá e disse:
- Vossa Graça, permite-me perguntar o que estais lendo?
- As palavras dos sábios – disse o duque.
- Esses sábios ainda estão vivos?
- Não, há muito que já morreram.
- Então o que ledes são apenas restos deixados para trás.
- Como ousas fazer tal comentário sobre o que estou lendo?! – gritou o duque. – Explica-te ou morres!
- Certamente, Vossa Graça – disse o fabricante de rodas. – Eis como vejo isso. Quando trabalho numa roda, se bater no formão com muita suavidade, ele desliza e não agarra. Mas se eu bater no formão com muita força, ele fica preso na madeira. Quando a batida não é muito suave nem muito forte, eu sei; minhas mãos conseguem sentir. Não há modo que me permita descrever esse ponto de equilíbrio perfeito. Ninguém me ensinou e não posso ensinar ao meu filho. Já faz setenta anos que pratico meu ofício e nunca serei capaz de passá-lo adiante. Quando os velhos sábios morreram, levaram consigo o que sabiam. Foi por isso que eu disse que o que ledes são apenas restos deixados para trás.

(Texto de Zhuang Zi extraído de O segundo livro do Tao. Stephen Mitchel. Rio de Janeiro: Nova Era, 2010.)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011


Yu e a abertura dos canais

               Nos tempos antigos, vez por outra os rios transbordavam. Mas quando Yao era imperador na terra, o mundo sumiu sob as águas. A água era tanta que estremeceu a voz do povo: “É o dilúvio!”. Depois que as águas romperam os leitos dos rios, no corpo do mundo só havia umidade.  Onde crescia uma variedade de grãos só havia pântano. Desterrados animais selvagens se voltavam contra as pessoas. Acuadas em suas casas, vozes obstruíam os buracos das paredes e mofavam os espíritos. O caos tomou conta do povo amarelo.
                Na ânsia de conter a inundação Gun pegou da Argila que se Expande[i] e construiu diques, como nos anos anteriores. Não deu jeito. Por havê-la tomado sem permissão, o Imperador do Céu mandou matar Gun, que foi sacrificado no Monte das Penas. Morto, seu estômago se abriu e dele saiu Yu.
Sem prolongar os castigos e as penas, o Imperador do Céu ordenou a Yu que colocasse o mundo fora de perigo. Yu repensou a situação. Então desfez os diques de argila e convocou um grande número de deidades em um monte para traçar seu grande plano. Designou tarefas e iniciou o trabalho de abrir canais para drenar as águas.
               Caiu no mundo pisando lama. Durante anos trabalhou sem descanso. Passou grandes dificuldades. Bebeu e comeu do simples. Mas o trabalho era enorme e Yu definhou. Era só osso. E cavou terra. A devoção ao trabalho o deixou manco. Mas empregando todas as suas forças seguiu na labuta. Percorreu o mundo mancando cambito. Em seu caminho arrumou mulher e um filho. Dizem que na primeira vez que sua mulher viu todo osso, ela falou: “Olha que o tutano até que dá um caldo!”. E de osso Yu fez uma criança. Mas passou tanto tempo fora de casa que só conheceu filho crescido. Durante esses anos Yu aprendeu a viver do eterno ajuste.
              Com o Dragão Amarelo arrastando a cauda à sua frente, abriu vias extraordinárias para reconduzir os leitos. E após nove anos, logrou domar as águas. Realizado o trabalho, Yu se encontrava sentado olhando o rio Amarelo, quando viu emergir um rosto branco unido a um corpo de peixe. “Sou o espírito do rio Amarelo”, disse a Yu, e de pronto lhe entregou um mapa das vias das águas, suas convergências e divergências. E então, voltou ao rio e desapareceu.
             Yu pôde falar sobre a engenharia dos canais aos camponeses. Ensinou-lhes sobre a via das águas. E dessa maneira, deu ferramentas aos camponeses para que pudessem realizar os próprios ajustes em seus campos de grãos.
 Por sua virtude, Yu se tornou o fundador da Dinastia Xia e ficou conhecido como Yu, o Grande[ii]. Hoje em dia, quando o céu ameaça desabar sobre a terra, sacrifícios são feitos ao espírito de Yu. Em transe, os homens dançam horas sem parar. Imitam o seu mancar e atravessam a noite no passo de Yu.

(Adaptação livre de diversos fragmentos a respeito da lenda de Yu e do que ficou conhecido como a Grande Inundação. Os fragmentos foram compilados, editados e traduzidos por Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de


[i]A Argila que se Expande era um tipo de terra que aumentava e crescia infinitamente, daí Gun tê-la usado para tentar conter as águas.

[ii] Ou ainda: Da Yu.