sexta-feira, 4 de março de 2011


Boyi, o menino que compreendia os animais

          No meio do mato vive um menino que se chama Boyi. Há tempos saiu de casa e caiu no galho de aprender palavra de ave. Levava a vida na flauta e se meteu com todo canto. Quadrupiava metido no mato até que ficou versado em árvore. Gostava de perder tempo conversando com o corvo de três patas. O corvo, que era fiado no bico, mostrou a Boyi a planta Diri. Falou que quem a comesse não envelheceria. Isso explica o menino nunca ter crescido. Dos frutos preferia encaixar bunda de formiga entre os dentes. Larvas gordas tinham um gosto de tronco de côco.
          E assim, despreocupado de palavras vivia de pedra em pedra quando do galho descia. Até que o mundo se encheu de água. Uma grande inundação deixou poucas terras secas e os animais começaram a se meter entre as pessoas. Logo, uns atacavam os outros. As pessoas ficavam sem os pedaços da carne que as feras arrancavam. Era cada bifão. Feridas de garras e bosteadas de ave, as pessoas iam se queixar ao Imperador Yao. Diante do caos, este chamou Yu, o Grande, e confessou suas intenções de atear fogo nas áreas secas para espantar as bestas selvagens. Yu, humildemente afirmou que a medida não era adequada, mas que conhecia alguém que seria capaz de pacificar as relações entre os homens e os outros animais. “Há de ser Boyi” garantiu Yu. “O menino compreende a linguagem das aves e é conhecido por adestrar animais selvagens”. De pronto, saiu no encalço do garoto.
          Depois de uns dias rasgando mato, encontrou-o empoleirado em galho. Ao saber das intenções do Imperador o menino ficou arara. Gralhou a lógica imperativa e gorjeou suas razões de bicho. Yu não entendeu a prosa de passarinho, mas soube que o garoto ajudaria. E o menino fez do seu jeito. Lembrou de cabra gente boa que conhecia e, então, lhe pediu ajuda. Zelosa como era, cabra disse que levaria Boyi para conversar com o Javali. Conhecido por sua honestidade era muito benquisto até mesmo entre os mais selvagens. Assim, a cabra cedeu acento ao menino e saíram atrás.
          Encontrara Javali com a barriga pra cima, todo esparramado. Ao escutar o motivo da visita, prontamente, o Javali garantiu que os desentendimentos acabariam. Logo mandou que abrissem um vinho e chamou outros animais para comer e beber. Os bichos foram chegando às patotas. Em pouco tempo, estavam todos rindo e satisfeitos. Todos concordaram evitar desentendimentos com o animal humano. A Cabra, que apreciava um bom vinho, contava uns caso. Entre um e outro cigarro de palha, o Tigre, poeta que era, tomava a palavra para lavrar. E assim, viraram a noite na farra. E Boyi? Menino que era, dormiu na primeira hora. Desmaiado que nem bicho de pé num canto.
          No dia seguinte, quando manhã cheirou cangote de Boyi, ele já tava de pé dando chute em canela de formiga. Mas teve bicho que dormiu o dia inteiro. O silêncio na mata foi tão grande que os murmúrios logo chegaram ao ouvido do Imperador. Boyi conseguira trazer a paz entre as pessoas e os outros animais. E assim mesmo, do jeito que era, o menino ficou. Não entendia das confusões do mundo. Mas sabia que nada há para ser entendido.[i]



[i] Os anos se passaram e Boyi nunca mais foi visto naquelas regiões. Caiu no mundo. Dizem que passou uma vida em Mato Grosso e o chamavam Bernardo. Suas meninices inspiraram um poeta a copiar sua fala e escrever um Compêndio para uso dos pássaros.

(O texto é uma versão livre. Os fragmentos a respeito do mito Boyi podem ser encontrados em Mitologia clásica china. Edicions de La Universitat de Barcelona, 2004. Edição e tradução de Gabriel García-Noblejas Sánchez-Cendal. Outras fontes: São Paulo: Andreoli, 2010. Maspero, Henri. El taoísmo y las religiones chinas. Trotta: 2000.)

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