sábado, 7 de maio de 2011

Tianshu

                 
A constelação da Ursa Polar tem sete estrelas. Olhando para cima, a primeira estrela do norte é Tianshu. Com os pés fincados na terra o homem se estica até a ponta dos dedos e com um pouco de esforço é capaz de alcançar Tianshu. Tal hábito foi desenvolvido pelos habitantes de Wei. Mas dos quarenta e cinco habitantes, o vigésimo quinto nunca havia relado o dedo na estrela – visto que era fraco de altura. Viviam caçoando dele e o apelidaram Xiao[1].
– É um olhar para baixo que eu nasci tendo – pensou Xiao. – Eu, uma criatura da terra, livre e seguro, pareço estar ligado a uma corrente suficientemente longa para percorrer toda a imensidão sob seus pés, sem restrições. No entanto, é longa apenas na medida em que não permite ir além dos confins da terra.
          Acima de sua cabeça uma leve bruma ganhava peso. O vento, com suas mãos invisíveis e de maneira imperceptível, retém as nuvens que, aos poucos, vão tomando forma. À medida que as nuvens se apertavam, as estrelas iam se recolhendo, até desaparecerem. Na direção oeste, densas nuvens prometiam nutrição e bênçãos à terra. Mas, por ora, não haveria chuva.
          – É um olhar para cima que eu nasci tendo – percebeu Xiao. – Sou capaz de cavalgar as nuvens, levado pelo vento no vai e vem do espírito, em vôo frágil e cheio de luz. O vento pode reunir as nuvens no céu, mas sendo apenas ar, sem corpo sólido, não é capaz de produzir a duração. Eu, criatura do céu, se desejo descer à terra, sou sufocado pela corrente celeste presa a meu pescoço, como uma coleira. E, não obstante, tenho todas as possibilidades e assim o sinto.
          Como pode o homem formar o eixo, a comunicação entre as duas energias, os dois movimentos? Conhecer o que separa o puro do impuro? Xiao vivenciou tempos obscuros, tinha a impressão de que as situações difíceis e inflexíveis o perseguiam. Sua luta interna o levou ao que parecia ser um “tempo de estancamento”. Céu e Terra pareciam incapazes de se comunicar. A respiração do Céu se elevou e a respiração da Terra afundou. Foi o inverno da alma.  
          Xiao resolveu fazer o que lhe cabia: ser pequeno. Deixou de observar a situação e aos poucos pôde recobrar a calma. Com a força do céu, perseverou em seus princípios e redescobriu o poder da claridade. Com a força da terra, sua mente receptiva e aberta vislumbrou suas idéias decadentes. Um velho fantasma precisava ser sacrificado. Fez das velhas idéias sua vítima sacrificial. Oferecendo o velho fantasma aos ancestrais, dançou e cantou. Por um tempo indeterminado entoou a máxima pi ji tai lai. De repente, um sopro com aroma de terra veio do céu e lhe cochichou um segredo. Xiao olhou para seu umbigo. O tocou com o dedo. E com a ponta do indicador deslizou por seu ventre formando uma linha imaginária. Lá estava o eixo. Eis o homem. Céu e Terra fluiram convergentes e o sacro ancorou. Na fronteira do indiferenciado, Xiao encontrou Tianshu.
          Em paz, se lembrou daqueles a que estava ligado por conexões interiores. Eram suas raízes. Aos poucos, desceu em vôo rasteiro, em adejar simples e sincero. Alguns o ouviram atentamente. No início, não entenderam direito, mas Xiao era bom para esclarecimentos. Sob olhares curiosos, explicava:
– Olha, é só abaixar a cabeça. Tá vendo o umbigo? Bem ali a terra beira o céu! Partindo do umbigo, o horizonte se estica. Acima brilha o céu. Abaixo cheira a terra. Agora é só transversar para os lados e o eixo se forma. O puro sobe a cavidade. O turvo desce sinuoso. Tianshu fica no horizonte do homem. Toquem a estrela.”
Aos poucos, seus próximos começaram a entendê-lo. Não demorou para que compreendessem as ações de Tianshu. Digo isso porque, na província de Wei, vez por outra acontecia de o horizonte se confundir. Nubladas, as pessoas podiam ver os primeiros meteorismos correrem descontrolados no horizonte. Nessas horas, Xiao intervinha: esticava o horizonte a dois cun do umbigo e prendia cada ponta em uma agulha, assim os meteorismos acabavam. Satisfeitos, os habitantes passaram a procurar Xiao. Logo pôde resolver as várias desarmonias de Wei. Chegavam distendidos e até mesmo pastosos, e de várias outras queixas de obrar. Não demorou para que também ficasse conhecido na província de Pi – visto que seus horizontes se acoplavam.
Aos poucos, o trabalho de Xiao aumentou. Mas, com trânsito livre na província de Pi, pôde esticar o horizonte numa grande transversal até Daheng que fica lá pras bandas do mesentério. Mas os habitantes de Wei, viscerais pastores da terra, ficavam enciumados. E agora, firmes no obrar, faziam questão de repetir que é em Tianshu que o intestino grosso faz mu.


[1] Xiao: pequeno


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